segunda-feira, 7 de março de 2011

como engripa a ficção

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O acadêmico e crítico literário James Wood escreveu um livro muito interessante, chamado How Fiction Works. É um estudo dos principais elementos que compõem uma obra literária: a voz do narrador, a caracterização dos personagens, as figuras de linguagem, o papel dos detalhes e assim por diante.

Traduzi o livro para o português em 2008, a pedido da editora Cosac Naify. O texto em inglês é muito simpático, fluente, agradável. Em linguagem informal, Wood apresenta aqueles elementos com uma sólida articulação entre eles, num tratamento bastante sistemático e rigoroso, sendo os temas expostos numa sequência de tópicos numerados (num total de 123).

Avisa ele logo na introdução:
Neste livro, tento responder algumas das perguntas fundamentais sobre a arte de ficção. ... espero que seja um livro que faz perguntas teóricas e dá respostas práticas – ou, em outras palavras, que faz as perguntas do crítico e dá as respostas do escritor.
E para isso Wood lança mão de uma infinidade de citações e exemplos. É como se ele tentasse refazer o caminho que vai do empírico ao conceitual, da atividade do escritor à formalização do critico, e reconstruir ligações que pareciam ter desaparecido sob o peso de generalizações demasiado abstratas.

Assim, James Wood toma uma questão - por exemplo, a voz do narrador - e sustenta seu argumento invocando casos concretos, isto é, citando trechos mais ou menos extensos de várias obras literárias.

Isso, para o tradutor, coloca uma exigência clara - bastante simples, mas imperiosa. É preciso que a tradução preserve ao máximo possível o nexo que o autor estabelece entre o caso concreto e a formulação teórica, entre as citações literárias e as reflexões de Wood.

Aqui devo explicar um procedimento editorial que vige em algumas casas: é o costume de recorrer a traduções previamente existentes para extrair as citações, ao invés de permitir que o tradutor faça sua própria tradução de tais trechos. No entanto, conforme alertei os editores, este procedimento me parecia inaplicável a Como funciona a ficção, pelo simples fato de que o elemento destacado por Wood numa determinada citação vinha alterado ou até eliminado em traduções anteriores. Por essa razão, traduzi pessoalmente as centenas de citações feitas por Wood, no esforço de preservar a articulação muito rigorosa e coerente de seus argumentos.

Imagino que a editora tenha considerado minhas alegações insuficientes para justificar uma exceção a suas normas internas, pois preferiu manter o costume de utilizar traduções preexistentes.* Essa opção, a meu ver, acabou por acarretar alguns prejuízos para a inteligibilidade do texto. De minha parte, entendo que a obra de James Wood constitui uma unidade, e entendo que a edição brasileira acabou se tornando uma colcha de retalhos, em certos momentos beirando a incongruência.

Explico-me. Veja-se, por exemplo, o tópico 12. Wood está tratando do estilo indireto livre, e quer mostrar seu alto grau de flexibilidade. Para isso, toma um longo trecho de Henry James em What Maisie knew, que começa:
It was on account of these things that mamma got her for such low pay, really for nothing: so much, one day when Mrs Wix had accompanied her into the drawing-room and left her, the child heard one of the ladies she found there ... announce to another.   Foi por causa dessas coisas que mamãe a pegou por um salário tão baixo, realmente por nada: foi o que a menina, num dia em que a sra.Wix tinha entrado com ela na sala de visitas e a deixou, ouviu de uma das damas que lá encontrou ... dizendo a outra.
"Que exemplo de escrita!", exclama Wood. O ponto em questão é a multiplicidade de níveis, o autor que se aproxima e depois se afasta de Maisie. No item 13, Wood comenta que Maisie filtra com sua voz pessoal a visão oficial dos adultos, destacando a frase onde isso se patenteia: "Foi por causa dessas coisas que mamãe a pegou por um salário tão baixo".

No mesmo trecho em que Henry James descreve a afeição de Maisie pela sra. Wix, Wood aponta mais uma passagem onde o autor empresta voz a Maisie, quando a menina compara a sra.Wix à sua ex-governanta, a srta. Overmore:
... on whose loveliness, as she supposed it, the little girl was faintly conscious that one couldn't rest with quite the same tucked-in and kissed-for-good-night feeling. ... em cuja amabilidade, qual ela a imaginava, a menina tinha a tênue consciência de que não seria possível repousar com aquela mesma sensação de ser-ajeitada-na-cama e ganhar-um-beijo-de-boa-noite.
Wood chega a comentar admirado:
Notem que, para deixar Maisie “falar”, James se dispõe a sacrificar sua elegância estilística numa frase dessas.
O autor prossegue e finaliza suas quase cinco páginas de comentário sobre o trecho completo. Wood pretende ter demonstrado que Henry James, usando o estilo livre indireto, conseguiu criar diferentes níveis de compreensão com variados graus de identificação com o personagem, ao interpolar frases onde se ouve a voz de Maisie. Na decisão editorial, optou-se por utilizar outra tradução, já existente. Mas, numa infeliz coincidência, precisamente as passagens destacadas por Wood, onde James estaria dando voz a Maisie, estavam transpostas para outro registro:
Foi por causa dessas coisas que sua mãe conseguira contratá-la por tão pouco ...
... em cuja beleza a menina tinha a vaga consciência de que não era possível refestelar-se com igual sensação de aconchego e ternura.
Assim, desaparecida a voz de Maisie em mamma e tucked-in and kissed-for-good-night feeling arredondado em "sensação de aconchego e ternura", os comentários de Wood perderam a referência e se tornaram descabidos.

Friso que não pretendo questionar de maneira nenhuma o grande mérito das traduções utilizadas. Julgo-as, de modo geral, excelentes. O que quero destacar é que aqui, neste caso específico, a norma editorial de utilizar traduções prévias sem levar em conta o contexto e a finalidade da citação muitas vezes enfraqueceu - e algumas vezes anulou - os argumentos do próprio autor.

Veja-se outro exemplo.
There were not many patients, and he did not have to wait long, only about three hours. Não havia muitos pacientes, e ele não precisou esperar muito, apenas umas três horas.
Aqui, no bloco 18, a intenção de Wood é mostrar que a narrativa pode se apresentar como um ponto de vista mais coletivo ("um coro") do que individual, que se expressa no uso do verbo impessoal "haver", e dá a essa técnica o nome de "estilo indireto livre não identificado". A edição brasileira, porém, adotou uma tradução onde a ênfase recai sobre o personagem individual, com o uso do verbo pessoal "encontrar", e novamente o argumento de Wood fica girando no vazio:
Encontrou pouca gente na fila e assim não teve de esperar muito, só umas três horas.
Ao comentar que as inovações de Flaubert acabaram se tornando um tanto maneiristas nas mãos de outros escritores, Wood cita Isherwood:
The entrance to the Wassertorstrasse was a big stone archway, a bit of old Berlin, daubed with hammers and sickles and Nazi crosses ... The pavement was chalk-marked for the hopping game called Heaven and Earth. At the end of it ... stood a church.  A entrada da Wassertorstrasse era uma grande arcada de pedras, um pedaço da velha Berlim, emplastrada com foices, martelos e cruzes suásticas ... A calçada estava desenhada a giz com os quadrados da amarelinha, terminando na casa do céu. No final dela ... ficava uma igreja.
Wood quer mostrar a conexão entre as imagens das cruzes nazistas, do céu da amarelinha e da igreja. Mas o problema é que, a tradução utilizada, não há referência ao "céu" da amarelinha.Todavia, apesar de se ter perdido um dos elementos de conexão com o argumento de Wood, encontra-se no bloco seguinte, 37:
As "cruzes" nazistas permitem um bom ponto de contato com a amarelinha infantil, que vai do céu ao inferno, e com a igreja,
onde irrompe de súbito um surpreendente "do céu ao inferno".

No final do bloco 40, Wood comenta a propósito de uma imagem que acabara de citar: "A camponesa com a carta registrada é um pouco 'literária' demais".
... then a peasant woman reached out to him with a certified letter ... ... então uma camponesa se aproximou dele com uma carta registrada
O leitor pode procurar a imagem no trecho citado; no lugar da camponesa encontrará apenas "uma mulher estendeu para ele...":.

Um dos elementos centrais da narrativa literária, para James Wood, é o detalhe, sua concretude, sua tangibilidade. Dá como exemplos, entre outros, "um livro de orçamento doméstico" (a book of household calculations) e um "taco rombudo" (blunt cue) na mesa de bilhar, na casa de Eugênio Onêguin. A edição brasileira se desprende do contexto argumentativo de Wood, utilizando uma tradução com termos mais genéricos: "um diário de contas" e um "velho taco" de bilhar. Evapora-se a "estidade", a thisness de Wood.

Wood cita um trecho de To the Lighthouse, de Virginia Woolf, como exemplo de sutileza literária em apresentar "a complexidade de nossa estrutura moral":
They paused. He wished Andrew could be induced to work harder. He would lose every chance of ascholarship if he didn't. "Oh, scholarships!" she said. Mr Ramsay thought her foolish for saying that about a serious thing like a scholarship. He should be very proud of Andrew if he got a scholarship, he said. She would be just as proud of him if he didn't, she answered. They disagreed always about this, but it didn't matter. She liked him to believe in scholarships, and he liked her to be proud of Andrew whatever he did.  Fizeram uma pausa. Ele gostaria que Andrew se dispusesse a trabalhar com mais afinco. Do contrário perderia qualquer oportunidade de ter uma bolsa de estudos. “Oh, bolsas!”, disse ela. O sr. Ramsay achou uma tolice ela dizer uma coisa dessas sobre algo tão importante como uma bolsa de estudos. Ficaria muito orgulhoso se Andrew ganhasse uma bolsa, disse ele. Ficaria também muito orgulhosa se não ganhasse, respondeu ela. Eles sempre discordavam sobre o tema, mas não fazia mal. Ela gostava que ele acreditasse em bolsas de estudo, e ele gostava que ela se orgulhasse de Andrew, em qualquer circunstância.
Wood assinala que, se a obra é tão comovente, em parte é porque apresenta os atritos e pequenas concessões do cotidiano de um casal. Mas aqui também as observações de Wood perdem força, visto que na tradução utilizada faltam vários trechos e frases completas, especialmente aquelas com que o marido se opõe à esposa:
Houve uma pausa. Ele gostaria que fosse possível convencer Andrew a estudar mais. Perderia todas as oportunidades de ganhar uma bolsa de estudos [ ]. [ ]. [ ]. [ ]. Mas ela ficaria orgulhosa com ele do mesmo jeito se não ganhasse [ ]. Eles sempre discordaram a esse respeito [ ]. Ela gostava dele por ele acreditar em bolsas de estudo, e ele gostava dela por ela se orgulhar de Andrew no que quer que fizesse.
Wood aborda o tema do diálogo, concordando com Henry Green que um diálogo deve portar múltiplos sentidos e deve significar várias coisas para vários leitores diferentes. E então se estende sobre um diálogo em A House for Mr Biswas, de Naipaul. Wood quer mostrar que Naipaul marca a diferença entre os dois interlocutores e suas respectivas posições sociais utilizando sutilmente o patoá de Trinidad, e destaca como exemplo: But Rome get build (Mas Roma tá construída). Na tradução adotada, tem-se:
Mas um dia teve que se fazer,
o que não parece propriamente corresponder ao inglês estropiado mencionado por Wood.

Eu poderia multiplicar os exemplos, mas creio que estes são suficientes.

Quero ressaltar que, naturalmente, minhas traduções não estão isentas de falhas e sempre podem ser revistas, buriladas, melhoradas: nisso eu seria a primeira a agradecer um diálogo com os editores, a fim de aprimorá-las.

Mas aqui a questão é outra: o cerne, a própria matéria-prima de reflexão em How Fiction Works aparece em Como funciona a ficção como uma montagem mais ou menos desconexa de trechos de diferentes tradutores, sem muito cuidado editorial em avaliar se as soluções eram cabíveis no contexto da análise de James Wood.

Não me sinto à vontade para assumir a responsabilidade de tradução em Como funciona a ficção, pois entendo que a edição brasileira destoa em razoável medida do projeto desenvolvido em How Fiction Works, obra unitária dotada de coerência entre suas partes.

Se não fosse esperar demais, eu tomaria como sinal de grande seriedade editorial se a Cosac Naify substituísse essa edição por uma edição mais condizente com a qualidade do original, o empenho da tradução e a expectativa dos leitores.

* Uma nota do editor à p. 213 da edição brasileira, na bibliografia, especifica: "As traduções das citações feitas por James Wood foram extraídas das edições indicadas aqui, e em alguns poucos casos foram adaptadas conforme necessidade do texto de Wood. [N.E.]".


Observação: essa exposição de motivos é um comunicado público sobre o que entendo serem minhas responsabilidades profissionais. Em vista disso, tive por bem fechar a caixa de comentários, deixando meu agradecimento a todas as manifestações recebidas. Naturalmente, isso não afeta o pleno direito de resposta da editora, garantido neste espaço.
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13 comentários:

  1. E eu que acreditava na Cosac..
    Parabéns pelo blog

    Abraço

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  2. Denise,

    que história! Por isso muitas vezes não entendemos alguns textos...

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  3. Muito pertinente toda esta discussão. Felizmente, neste caso, posso ler no original e já encomendei via Better World Books (frete internacional grátis!).

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  4. Te apóio totalmente contra essa decisão tão ãã... hirta e surda.

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  5. Denise,

    Você mostrou firmeza e determinação mais uma vez, ao enfocar esse tema com a visão voltada para os direitos de seus leitores, e não somente para os seus próprios.

    José Lira

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  6. http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/03/12/cosac-naify-responde-criticas-da-tradutora-denise-bottmann-368308.asp

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  7. Denise,
    Escrevi isto no Orkut (ProsaContemporânea):

    Embora alguns detalhes nas traduções da Denise pros trechos pudessem ter ficado melhores com um pouco de toma-lá-dá-cá entre ela e o editor, ela tá totalmente certa. O editor, invocando "normas" q claramente não se aplicam ao caso, optou pelo mais fácil: passar com um rolo compressor por cima das delicadas questões tratadas no livro –questões q nada têm a ver com um problema secundário como é o da tradução. Se o livro foi concebido pra ser informativo sobre um determinado assunto, esse assunto tem q prevalecer sobre qqer "norma" da editora. Do contrário, ¿publicá-lo pra quê?

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  8. Nossa, Denise, que coisa mais chata. Parece que o editor preferiu utilizar outros nomes de tradutores, ao invés de apenas o seu, para "enriquecer" a obra (?), mas se esqueceu de ler o resultado final. Fico admirada por isso ter passado por revisão e ninguém ter apontado que os comentários simplesmente não faziam sentido! É uma pena para o leitor brasileiro. Ainda bem que tive contato com esse texto antes de adquirir o livro, obrigada pela sinceridade!

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  9. o link com a resposta da Cosac é bastante esclarecedor, segue o link http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/03/12/cosac-naify-responde-criticas-da-tradutora-denise-bottmann-368308.asp

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  10. How edition works...
    O mais difícil de aceitar é que uma aberração destas ocorra por mero apego cego às normas internas da editora; falta profissionalismo, competência e sensibilidade ao mercado editorial brasileiro. Quanto custa a uma editora ter a desenvoltura necessária para saber superar as limitações das suas normas, quando isso for necessário? A atitude é tão tacanha que me ponho a suspeitar de outras motivações.
    Lucas Petry Bender

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  11. com o perdão do palavrâo, putaquepariu.
    comprei o livro ontem, na saraiva on line. quando vi que havia sido traduzido por você, acreditei nele. além disso, cosac sempre havia sido referência para mim...

    muito tempo que não vinha em seu blog! =(

    se eu soubesse disso antes, tinha pensado duas vezes antes de comprar o livro...

    respeito e admiro muito o seu trabalho.
    parabéns! quem dera se todas as editoras e todos os tradutores pensassem de maneira íntegra assim...

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  12. esse país está perdido. Num lugar onde se idolatra as traduções da Lya Luft e do Mário Quintana, dá vontade de morrer, reencarnar de uma vez na Inglaterra.

    parabéns, denise.

    Enzo Potel

    (denise, libera comentários para quem não tem gmail, nem wordpress! tive que usar o de uma amiga)

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